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Especial Disney Legends | Mary Blair

 

De vez em quando sempre ouvimos falar de grandes nomes como Glen Keane, Andreas Deja, Mark Henn, Fred Moore, Ollie Johnston, Hayao Miyazaki entre vários outros artistas conhecidos mundialmente devido à suas enormes contribuições para o gênero animação, tamanho o empenho com que se dedicaram na realização dos mais diversos filmes animados, muitos dos quais verdadeiras obras-primas de toda a história da 7ª arte. Mas dentre tantos profissionais masculinos, muitos devem se perguntar: e as mulheres? Elas não possuem uma atuação mais efetiva nesse ramo?

Acontece que esses mesmos Clássicos também não seriam os mesmos se não fosse a participação, muitas vezes fundamental, de diversas artistas femininas, sejam elas animadoras, designers visuais, compositoras, dubladoras, figurinistas ou simples pintoras de celuloides. E, embora grande parte delas infelizmente ainda não receba o mesmo destaque dado aos homens atuantes no ramo, algumas já são bastante reconhecidas por parte do público, como por exemplo uma certa artista plástica que esse ano completaria o seu 100º aniversário e a qual dedicamos o terceiro especial de nossa série Disney Legends! Só poderíamos estar falando de Mary Blair, uma das mais famosas ilustradoras e produtoras artísticas que já trabalharam na Walt Disney Pictures e cujos trabalhos em renomadas produções como “Cinderela” e “Peter Pan” são admirados até hoje pelos grandes fãs do estúdio!

Mary Brown Robinson nasceu no dia 21 de Outubro de 1911 na cidade de McAlester, do estado Oklahoma nos EUA (sua família ainda se mudaria para o Texas e posteriormente para a Califórnia, quando ela tinha apenas cerca de sete anos de idade). Desde seus tempos de juventude, a jovem Mary demonstrava ser um talento nato para as artes plásticas e aos 20 anos ela conseguiu uma bolsa de estudos na célebre escola de arte Chouinard Art Institute, em Los Angeles, onde teve aulas com grandes mestres como Pruett Carter, Morgan Russell e Lawrence Murphy. Como não havia conseguido um emprego após ter se formado em 1933, a artista viveu por mais algum tempo com seus pais em San Jose. Seu maior sonho era um dia se tornar uma grande pintora, mas os tempos difíceis da Grande Depressão dificultavam a concretização de tais objetivos. Em 3 de Março de 1934, Mary se casou com o artista Lee Blair, que havia conhecido na Chouinard Art Institute, com o qual teria dois filhos: Donovan, nascido em 1947, e Kevin, nascido três anos depois, em 1950.

 

Ilustrações de Mary Blair (algumas disponíveis para ampliação):

Primeiras Aquarelas de Mary Blair:

(Auto-Retrato)

Foto do Casamento de Mary e Lee

“Nós somos artistas, querido, e somos apaixonados pela arte e um pelo outro. Temos de fazer esses amores se coincidirem e fundirem-se em uma bonita, feliz e rica vida – o que corresponde ao nosso futuro. Vamos viver juntos para sermos felizes e pintar para expressar a nossa felicidade.” – trecho de uma carta escrita por Mary ao marido, pouco tempo depois de se casarem.

Tão talentoso quanto sua esposa, Lee aos 23 anos foi nomeado presidente da Sociedade de Aquarela da Califórnia, onde o casal Blair exibia suas aquarelas em exposições feitas em algumas galerias privadas. Embora no fundo sonhasse ingressar no mundo das belas-artes, Mary enfim arranjou um trabalho no departamento de animação da Metro-Goldwyn-Mayer Studios, substituindo o marido que havia sido contratado, em 1938, como diretor de cor em um longa-metragem que estava sendo produzido por um outro estúdio de desenhos animados. Até então nada de mais, se não fosse pelo fato do tal filme ser nada menos que o Clássico “Pinóquio” (1940) e o tal estúdio ser nada menos que a nossa querida Walt Disney Pictures que na época já era conhecida em todo o mundo por conta de suas inovadoras criações no ramo, como por exemplo um dos primeiros longas de animação lançados na história do cinema, “Branca de Neve e os Sete Anões” (“Snow White and the Seven Dwarfs”, de 1937).

Mas você deve estar se perguntando: oras, o que a nossa homenageada tem a ver com isso? Afinal de contas, não foi apenas o marido dela que migrou para a casa de Mickey Mouse? Sim, mas dois anos depois, a nossa artista, seguindo os conselhos de Lee Blair, enfim também entrou para a equipe de profissionais da Disney! Seu primeiro trabalho no estúdio foi a criação de algumas aquarelas para “Ballet dos Bebês” (“Baby Ballet”) , um dos segmentos planejados para a segunda edição de “Fantasia” que não chegou a ser produzida (para os que desconhecem, Walt Disney originalmente pretendia lançar de tempos em tempos um novo “Fantasia” com “animações musicadas” inéditas, mas devido ao fracasso do Clássico original nos cinemas, tal ideia não pôde ser levada adiante.). Mary Blair também fez algumas ilustrações em aquarela para a primeira versão de “A Dama e o Vagabundo” escrita por Joe Grant e participou brevemente no desenvolvimento do visual artístico de “Dumbo” (1941). Mal sabia ela que em breve sua carreira iria tomar novos rumos a partir de uma certa viagem à América do Sul…

“Ballet dos Bebês”

“A Dama e o Vagabundo” (1ª versão):

“Don Quixote” (projeto abandonado):

 

2ª Guerra Mundial. Os EUA, temendo que os países latino-americanos pudessem se unir às forças inimigas do Eixo, dá início à chamada Política da Boa Vizinhança que consistia na busca de relações cada vez mais amigáveis entre os companheiros do sul visando um maior apoio à política norte-americana por parte dessas nações. E, dentre as medidas tomadas pelo governo na época, foi proposto a Walt Disney uma visita à América do Sul, na qual sua equipe poderia reunir material suficiente para a realização de um novo filme animado com temas latino-americanos. Dito e feito! Em 1941, Disney e vários membros do estúdio fizeram uma viagem de três meses em países como o Uruguai, a Argentina, a Bolívia e o Brasil, visitas estas que resultariam na produção de “Alô Amigos!” (“Saludos Amigos”, de 1942) e “Você Já Foi à Bahia?” (“The Three Caballeros”, de 1944). E, como você já deve ter adivinhado, dentre os artistas presentes na equipe, lá estava o casal Lee e Mary Blair.

 

“Alô Amigos!”

 

Ao ilustrar em aquarelas, desenhos e rascunhos as suas impressões visuais da América do Sul, a obra da jovem artista transformou-se drasticamente, passando a ter um estilo único marcado pela presença de cores vívidas e brilhantes. Segundo o animador Frank Thomas: “Quando ela viajou conosco não sabia que ela era capaz de produzir algo assim! Até então, sempre havia seguido os passos dos outros. Podia desenhar e pintar qualquer coisa ou pessoa, mas não se expressava. Sem demora, na América do Sul começou a adquirir seu estilo próprio e a fazer coisas maravilhosas, era genial!”.

Com tamanha evolução, Mary Blair conseguiu capturar em seus trabalhos o espírito presente nas nações latino-americanas e suas criações enfim chamaram a atenção do próprio Walt Disney que, admirado com os resultados obtidos por ela, a encarregou da direção artística de “Alô Amigos!” e, posteriormente, “Você Já Foi à Bahia?”.

 

“Você Já Foi à Bahia?”

 

 

Mas a viagem à América do Sul fora apenas o começo… Substituindo as aquarelas (sua técnica favorita) pelo guache, Mary Blair assumiu a partir de então a direção de arte dos principais lançamentos  do estúdio na década de 40, não só animações como “Música Maestro!” (“Make Mine Music”, de 1946), “Tempo de Melodia” (“Melody Time”, de 1948) e ”As Aventuras de Ichabod e o Sr. Sapo” (“The Adventures of Ichabod and Mr. Toad”, de 1949), mas também algumas das primeiras produções em live-action da Disney, tais como o polêmico “A Canção do Sul” (“Song of the South”, de 1946) e “Meu Querido Carneirinho” (“So Dear to My Heart” de 1949).

 

“Música Maestro!”

“A Canção do Sul”:

“Tempo de Melodia”:

 

E à medida em que trabalhava em todos esses projetos, a ilustradora só aprimorava cada vez mais a sua arte estilizada e repleta das mais variadas cores e formas. De acordo com depoimento do animador Frank Thomas: “Mary foi a primeira artista que conheci a usar diferentes tons de vermelho um ao lado do outro. Isso não se faz! Mas Mary fez isso funcionar.”.

A beleza sutil e encantadora, somada à um leve toque infantil, presente nas pinturas de Mary também fez com que ela se tornasse uma das artistas preferidas do próprio Walt Disney, que apreciava bastante o modo como as criações dela conseguiam contar as mais diversas histórias, assim como o uso das cores e as emoções presentes nas obras da mestra. “O modo como ela (Mary) pintava – muitas vezes, demonstrava que ela ainda era apenas uma garotinha. E Walt gostava disso…Você podia ver a forma que ele se relacionava com as crianças – com ela era da mesma forma.”, diz o artista Roland Crump.

 

“Meu Querido Carneirinho”

”As Aventuras de Ichabod e o Sr. Sapo”

 

E assim chegamos aos anos 1950! Década de grandes novidades para a Walt Disney Pictures ao mesmo tempo em que o estúdio enfim voltava às suas origens após os turbulentos anos de Segunda Guerra Mundial, voltando a produzir longas animados constituídos por uma só narrativa ao contrário dos “filmes-pacote” lançados na década de 40 a partir de “Alô Amigos!”. Esse retorno triunfal se deu com o lançamento de um novo conto de fadas cujo enorme sucesso nos cinemas de todo o mundo possibilitou que a Disney definitivamente voltasse aos trilhos. Só poderíamos estar falando de “Cinderela” (1950), Clássico imortal que até hoje é tido como uma das maiores e mais populares animações do estúdio.

E é claro que a nossa artista não poderia ter ficado de fora dessa! Mary Blair teve papel fundamental na aproximação visual dos cenários, personagens e cores do filme. E é claro que seus dotes artísticos ousados e criativos novamente falaram mais alto!

“Cinderela”


 

Embora “Cinderela” tivesse que ser feito sob os menores custos possíveis devido à situação financeira apertada em que o estúdio se encontrava na época, Walt Disney fez questão de que o visual do longa não abrisse mão do capricho visto em Clássicos como “Bambi” (1942) e “Pinóquio”. O resultado foi um design aconchegante e requintado, marcado principalmente pela presença de várias cores e detalhes assim como o uso de traços e formas geométricas exageradas no desenho dos cenários. Um pouco mais simples se comparado com antigas produções da casa, mas belo o suficiente para o deleite dos olhos de todas as plateias.

 

 

Mas Mary Blair enfim atingiria o auge de sua criatividade em um outro projeto, desenvolvido quase na mesma época de “Cinderela”: a adaptação do famoso livro de Lewis Carrol, “Alice no País das Maravilhas” (“Alice in Wonderland”, de 1951). A mestra exerceu uma forte influência no estilo artístico ousado e de caráter psicodélico presente no filme, através de suas inúmeras ilustrações que exploravam excessivamente o uso das mais variadas cores e formas desproporcionais, ressaltando dessa forma o quão diverso e amalucado era aquele mundo onde Alice se metia.

Talvez ela não tivesse noção disso na época, mas foi a artista Disney que enfim introduziu por completo a pura e inovadora arte moderna às animações do estúdio.“Ela trouxe a arte moderna para Walt em um modo que nenhuma outra pessoa fez. Ele estava muito animado com o trabalho dela.”, declarou o animador Marc Davis, que inclusive a colocava no mesmo nível do desenhista francês Henri Matisse no quesito uso de cores.

 

“Alice no País das Maravilhas”

 

Vale ressaltar que as criações de Mary Blair contribuíam apenas como artes conceituais básicas para a produção dos cenários, já que parte do estilo dela acabava se perdendo até a conclusão do visual final, o que particularmente incomodava Walt Disney que não conseguia ver o trabalho da artista na tela, motivo pelo qual ele elegeu o pintor Eyvind Earle para supervisionar todo o design, das paisagens às personagens, de “A Bela Adormecida” (“Sleeping Beauty”, de 1959), também em produção na época.

 

 

Embora já fosse uma das principais artistas da Walt Disney Pictures (sendo inclusive até invejada por alguns colegas que não gostavam de seus trabalhos e de sua maior camaradagem com Walt), Mary Blair ainda era, em parte, aquela moça recém-formada que queria se tornar uma pintora de sucesso. Portanto, sentindo que aquela era a melhor hora, ela pediu demissão do estúdio para enfim dedicar-se à pintura. Seus últimos trabalhos na Disney foram o desenvolvimento artístico dos curtas “A Pequena Casa” (“The Little House”, de 1952) e “Susie, a Pequena Coupé Azul” (“Susie, the Little Blue Coupe”, de 1952) e do longa-metragem “Peter Pan” (1953), onde novamente foi uma das principais responsáveis pelo visual final do filme, com o uso predominante de cores quentes e adequadas para diferentes iluminações em determinadas sequências animadas.

 

“A Pequena Casa”

“Susie, a Pequena Coupé Azul”

“Peter Pan”

 

Pouco tempo depois de ter se retirado da Disney, Mary Blair fundou seu próprio estúdio em Nova York, podendo assim passar um maior tempo com seus dois filhos pequenos. Ela trabalhou como designer gráfica e ilustradora, além de contribuir com campanhas publicitárias de empresas como Nabisco, Pepsodent, Maxwell House, Beatrice Foods entre outras. Mary também foi uma das principais desenhistas da série de livros infantis “Little Golden Books”, publicada pela editora Simon & Schuster que por sinal até hoje mantém vários dos desenhos da artista em suas eventuais reedições.

Mas se você achava que ela havia cortado de vez as suas relações com a Disney, se enganou. A pedido de Walt, em 1963, Mary Blair se encarregou da criação artística da atração “É um Pequeno Mundo” (“It’s a Small World”), pavilhão patrocinado pela Pepsi-Cola feito originalmente para a Feira Internacional de Nova York (1964-65), que posteriormente foi trazido de volta à Disneylândia e mais tarde replicado no Magic Kingdom na Walt Disney World Resort e nos parques temáticos de Tóquio, Paris e Hong Kong.

Em 1967, a artista também criaria a arte do mural do passeio “Tomorrowland”, com dois murais de azulejos ladeando o corredor de entrada. Em 1970, em sua última colaboração com a Disney, assumiu a decoração do Contemporary Resort Hotel na Walt Disney World da Flórida.

 

Campanhas Publicitárias:

Família Blair:

Desenhos com os Filhos Donovan e Kevin:

Livro Infantil “I Can Fly”:

“É um Pequeno Mundo”

“Tomorrowland”

Contemporary Resort Hotel

Demais trabalhos  da artista (os dois primeiros feitos para o musical Cole Black and the Seven Dwarfs):


 

Entretanto, em seus últimos anos de vida, Mary Blair passou por uma série de problemas pessoais e familiares, que por sua vez eram intensificados pelo consumo excessivo de álcool. Aos poucos sua saúde física e mental começou a deteriorar-se cada vez mais, assim como sua arte. Com apenas 67 anos de idade, a artista faleceu em 26 de Julho de 1978, na cidade de Sequel, na Califórnia, vítima de uma hemorragia cerebral.

Mas é claro, como uma grande Disney Legend que se preze, Mary Blair não morreu. Se depender de seu vasto e rico legado, ela sempre estará presente nos corações de todos os amantes das artes plásticas e/ou de desenhos animados. Mary também será eternamente lembrada por todos; não só por ter se destacado nos campos artísticos e comerciais, numa época onde as mulheres ainda lutavam pelos seus direitos, ou pela beleza ousada presente em suas criações, mas principalmente pelo fato dela ter persistido com sua arte até os últimos dias de sua vida, independente de quaisquer desafios e obstáculos que pudesse encontrar durante sua trajetória.

E como diria a sobrinha da ilustradora, Maggie Richardson, “Mary deixou um legado repleto de cores puras, magia e deslumbramento para que todos nós pudéssemos amá-la e lembrar-se dela para sempre”.

Que a grande mestra descanse em paz.

E se quiser ver mais ilustrações e pinturas de Mary Blair visite a versão em inglês do The Art of Disney Animation, o portal Michael Sporn Animation, o The Art of Mary Blair e o site criado pelas sobrinhas da artista, Jeanne Chamberlain e Maggie Richardson, Magic of Mary Blair.

 



Sinceros agradecimentos aos portais: The Art of Disney Animation, Magic of Mary Blair, Cantinho Disney, Animatoons, Le Figaro, Disneypedia mais o site oficial das Disney Legends. Colaborou Lucas Neves.

Escrito por Luís Fernando

"Tupi or not tupi! That is the question..."