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A Outra Ponta do Lápis | Artes-finalistas e coloristas da Era de Ouro

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A coluna desse mês será um pouquinho diferente das anteriores, Camundongos. Ao invés de falarmos sobre apenas um artista, iremos conhecer um grupos de profissionais que foi imprescindível para o início da animação refinada como conhecemos hoje: as coloristas e artes-finalistas da Era de Ouro dos estúdios Disney.

Muito mudou para as mulheres no mundo da animação desde a abertura do estúdio. Hoje, temos grandes profissionais que trabalham em diversas áreas como a roteirista Linda Woolverton (A Bela e a Fera, 1991), a animadora Kathy Zielinski (O Corcunda de Notre Dame, 1996) e a diretora Jennifer Lee (Frozen: Uma Aventura Congelante, 2013).

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No entanto, no início, era impensável para uma mulher se tornar animadora. Na verdade, os estúdios Disney contratavam garotas para poucas funções, como podem ver pela seguinte carta escrita como resposta a uma interessada em se tornar animadora:

Ela foi escrita em 1938, e diz, resumidamente, que nenhuma mulher pode trabalhar no departamento de animação. O estúdio encoraja a moça a se candidatar para uma vaga no departamento de arte-final e cor.

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É impensável imaginar uma mesma resposta no cenário atual, ainda bem! E por isso ela foi motivo de polêmica e revolta de algumas mulheres recentemente. No entanto, ela apenas reflete uma realidade da época. A maioria das empresas na década de 1930 não aceitava mulheres em todos os cargos.

Walt nunca duvidou da capacidade das mulheres. “Se uma mulher pode fazer o mesmo trabalho, ela vale tanto quanto um homem. As artistas garotas têm o direito de esperar pelas mesmas chances do que homens. E eu, honestamente, acredito que elas podem eventualmente contribuir para essa indústria de uma maneira que nenhum homem faria ou poderia,” disse ele.

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Mesmo Walt tendo agido de maneira distinta, se comparado a outros empresários, contratando mulheres para trabalhar em sua empresa, o processo de contratação nem sempre foi justo. De uma hora para outra, para ser possível produzir obras trabalhosas como Branca de Neve e os Sete Anões (1937), centenas de vagas surgiram para o posto de coloristas. Não haveria homens suficientes para suprir a demanda.

Algumas vezes, as candidatas — na maioria, em torno de vinte e cinco anos — eram escolhidas por sua aparência física. Não necessariamente por sua beleza, e sim, por quanto aparentavam poder trabalhar. O tom rosado de suas bochechas, por exemplo, indicava, na opinião dos recrutadores, que a moça aguentaria mais tempo trabalhando. Loucura, não?

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Infelizmente, assim como nos dias de hoje, a maioria das moças era descartada porque os recrutadores acreditavam que elas eventualmente abandonariam o emprego para focar em seus maridos e filhos. Assim, um mito se criou. Passou-se a acreditar que homens tinham uma percepção melhor para reproduzir ações, personalidade e traços através de desenhos, e eles acabaram ficando com os postos de animadores.

Mas o que é uma colorista afinal? Bem, para entender isso, precisamos relembrar como as animações eram feitas na época. Todo o processo de animação como conhecemos hoje, começou muito cru. Com linhas soltas e cores simples. Branca de Neve e os Sete Anões, em 1937, foi o primeiro filme refinadamente finalizado, com linhas coloridas e mais de centenas de cores diferentes. O design do filme era uma dos fatores mais importantes de sua produção, já que vários rumores pregava, que ninguém aguentaria olhar para uma tela brilhante e colorida por quase duas horas.

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Para cada segundo de animação que vemos em tela, vinte e quatro desenhos são feitos pelas mãos de um animador. O papel principal desse profissional é acertar o tempo da ação e a emoção envolvida. Frequentemente, suas linhas são brutas e bagunçadas.

Uma arte-finalista desenha linhas firmes sobre os traços dos animador para que a animação se torne ainda mais fluída. Essas profissionais limpam o desenho em acetatos que, posteriormente, são colocados sobre belos e detalhados cenários. Se os traços tremem não intencionalmente, o público se desliga da ideia de que aquele personagem está vivo e é real. E se lembra que está assistindo a uma ilusão.

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Após a arte-final ser feita, as coloristas entravam em cena. Elas têm a difícil tarefa de pintar dentro dos contornos das arte-finalistas e garantem que cada cena mantenha os tons adequados. Antigamente, todas as cores eram criadas pelo laboratório do estúdio e recebiam números e até mesmo nomes especiais para homenagear alguns profissionais. Além das cores, efeitos especiais eram adicionados no final por artistas mais experientes. Efeitos como pó mágico, brilhos de magia, nuvens e fumaça.

Observe, no vídeo abaixo, todo o processo de animação clássica resumido. Reparem nas coloristas e artes-finalistas a partir do minuto 2:30, e como o narrador se refere a elas como “pretty girls”, belas moças em Português:

O processo de animação em 1938:

Em fotos e videos antigos, podemos ver vários corredores, onde as meninas ficam lado a lado com pequenos pincéis trabalhando minuciosamente. Elas contam que acabavam ficando todas em um imenso silêncio. Eventualmente, uma outra funcionária servia chá e elas tinham intervalos de quinze minutos.

Além de precisarem trabalhar rapidamente, elas precisavam ser muito precisas. A tinta que usavam secava rápido e qualquer erro seria quase inalterável, gerando mais custos e perda de tempo. Elas eram as melhores em encontrar erros que passam despercebidos por nós, como a cena da carruagem de Pinóquio (1940), pintada do lado contrário da folha e que teve seu erro escondido por uma imensa chuva adicionada à cena.

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Sobre a mesa, além de pincéis e tintas, as garotas mantinham folhas de referência dos personagens finalizados para não errarem nas dimensões e nos tons. Imaginem só, se de uma cena para a outra os belos cabelos negros de Branca de Neve se tornassem loiros? Ou até mesmo castanhos? O Grilo Falante, por exemplo, usava vinte e sete cores diferentes!

O relacionamento entre coloristas e animadores não era de maneira alguma incentivado. Elas eram, inclusive, proibidas de entrar no departamento de animação. Porém, como em toda empresa, haviam diversos momentos de descontração e casais se formaram. O mais famoso deles? Walt Disney e sua esposa Lilian.

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Hoje, a maioria das animações, quando feitas do modo tradicional. são coloridas digitalmente. No passado, porém, muitas vezes as profissionais precisavam encontrar soluções inteligentes para encontrar o tom certo. O rosado do rosto de Branca de Neve, por exemplo, foi feito com maquiagem real, aplicada em cada um dos vinte e quatro quadros por segundo.

Não era uma rotina nada fácil. Assim como os animadores, a equipe de coloristas e artes-finalistas precisava virar a noite e trabalhar durante finais de semana. Muitas vezes, elas desmaiavam de cansaço. Rae Medby, uma das artistas, diz que mal via a hora da produção de Branca de Neve e os Sete Anões (1937) acabar para ela poder ter uma vida normal. Além disso, a diferença de salários entre homens e mulheres era imensa. Em 1941, um animador era pago trezentos dólares por semanas e uma arte-finalista ou colorista, apenas dezoito.

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Quando a Segunda Guerra Mundial chegou, os estúdios quase fecharam as portas. Foi preciso diminuir o custo de produção e, assim, a técnica da xerox foi criada. Os traços não mais eram coloridos e passados manualmente para o acetato. Desse modo, várias meninas deixaram o estúdio, já que outras posições lhes eram negadas. E também houve aquelas que deixaram o trabalho para focar em suas famílias, fato nada raro para a época.

Por fim, que tal conhecer as histórias de uma das coloristas da época? Seu nome é June Patterson e, em 2013, aos 93 anos, ela foi entrevistada pelo canal do YouTube Chance Raspberry. Ela era prima do famoso animador Les Clark, um dos Nove Anciões. Ela aproveita o espaço para contar bastidores da época. Um pequeno tesouro:

Entrevista com June Patterson:

Mais do que polir o trabalho dos animadores, o legado dessas profissionais é o design dos filmes Disney como conhecemos. As linhas coloridas que contornam delicadamente Branca de Neve e Aurora se tornaram padrão em obras animadas ocidentais e representam refinamento, por ser um processo trabalhoso e custoso.

Essas “belas moças” fizeram pó de pirlimpimpim cair sobre Wendy e o vestido de Cinderela cintilar. Temos muito a agradecê-las pois criaram magia enquanto abriam espaço para mulheres em um ambiente dominado por homens.

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Escrito por Caroline

Designer Gráfico, Disney freak, viciada em café, quer ser roteirista e princesa quando crescer. Têm mais livros do que deveria e leu mais vezes “Orgulho e Preconceito” do que têm coragem de admitir.