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Clássicos na Crítica | Planeta do Tesouro

Nas mais clara das noites, quando os ventos do etéreo estavam calmos e pacíficos, as grandes naves mercantes, com suas cargas de cristais solares de Arcturian, sentiam-se a salvo e seguras. Pouco suspeitavam de que eram seguidas por piratas. E o mais temido de todos os piratas era o Capitão Nataniel Flint…

~Narrador

Inspirado livremente na obra escrita por Robert Louis Stevenson, “Planeta do Tesouro” (2002) marca a quinta colaboração de Jonh Musker e Ron Clements como diretores de uma animação, precedida por “As Peripécias do Ratinho Detetive”, “A Pequena Sereia”, “Aladdin” e “Hércules”; além da segunda incursão do Walt Disney Animation Studios – à época, Walt Disney Feature Animation – no gênero da ficção científica.

Logo no primeiro minuto, somos inseridos em meio a uma batalha entre dois navios, ou melhor, duas espaçonaves, afinal, a dupla de diretores optou por trocar os mares e oceanos pela imensidão do espaço, constituindo uma das maiores diferenças da adaptação em relação ao material original. Comandando uma destas embarcações está o lendário e temível Capitão Nataniel Flint, com a capacidade de aparecer e desaparecer em um piscar de olhos, o que o levou a acumular um inestimável e invejável tesouro, o butim de mil galáxias, localizado no planeta que batiza a animação.

Então, um outro observador é revelado: o pequeno Jim Hawkins, o qual está lendo o seu livro favorito, às escondidas de sua mãe, Sarah, que invade o seu quarto para manda-lo dormir, porém, não ser ler a melhor parte da história com ele. Doze anos se passam, o doce garoto torna-se um adolescente rebelde, trazendo enormes problemas tanto à sua mãe quanto à estalagem que gerenciam, a Benbow.

Depois de ser detido por policiais robôs por dirigir um veículo solar em área proibida, Jim escuta uma conversa de sua mãe com o Doutor Delbert Doppler, sobre o quanto ela está frustrada e desapontada com o comportamento desregrado dele; sendo interrompida pela queda de uma nave na frente da pensão, pilotada por Billy Bones, um marujo fugindo de um ciborgue para proteger uma misteriosa esfera, sendo esta confiada a Jim por aquele no momento de sua morte, minutos antes do local ser invadido e destruído.

Os três depois descobrem que a estranha peça é, na realidade, o mapa para encontrar o planeta do tesouro. Jim logo assume que esta é a solução para os problemas deles, e decide que o melhor é partir à procura do mesmo, enquanto sua mãe desaprova, por acreditar se tratar de apenas uma lenda, Doppler apoia a ideia e anuncia que financiará a expedição, a qual servirá também para construir o caráter do adolescente. Enquanto Delbert busca se realizar tanto profissional quanto pessoalmente com a oportunidade, Jim tenta encontrar seu lugar no mundo e provar que merece ser respeitado, e por consequência, fazer com que sua mãe se orgulhe dele.

Um dos pontos interessantes a se notar é como o roteiro trabalha, de forma latente, a noção de sonhos infantis. Todos, quando crianças, tiveram algum livro ou filme com que simpatizavam e torciam para que não fosse apenas uma fantasia. Algo que Jim consegue concretizar. Embora tenha crescido em um jovem problemático, ele ainda mantinha acesa uma fagulha daquele sonho de outrora, de encontrar o botim de mil galáxias e viver a aventura de uma vida.

Sarah: Jim, eu não quero te perder.

Jim: Mãe, não vai perder. E vai se orgulhar.

Ainda em relação às expectativas. A dupla de diretores brinca em subverter as do público, a exemplo do início, quando se tratava de um livro holograma, em vez de parte da trama; ou a lua crescente, a qual, na realidade, é o espaçoporto de Montressor, sempre em destaque nas cenas na casa de Delbert; ou mesmo a cena de introdução do R.L.S. Legacy e sua tripulação, passando a imagem, até mesmo aos personagens, de que o Senhor Arrow é o comandante da embarcação, no lugar da Capitão Amélia – além de fugir do clichê de ter um homem na chefia de um barco.

Ambientado em um universo steampunk – um subgênero da ficção cientifica, no qual a revolução tecnológica ocorreu antes do que na realidade; todavia, suas tecnologias são projetadas a partir da ciência do passado, a razão de muitas das máquinas serem movidas a vapor – e com diferentes espécies alienígenas, Jim e Sarah são um dos poucos humanos do elenco, “Planeta do Tesouro” é uma quebra da fórmula consagrada do estúdio, e, por esta razão, talvez seja um dos clássicos mais subestimados, e injustamente.

O trabalho realizado pela equipe técnica é irretocável. Com uma fotografia belíssima e cenários deslumbrantes, sabiamente explorados pelos planos abertos e gerais, o longa-metragem foi um dos pioneiros na união da animação tradicional e da computação gráfica, com a última sendo usada amplamente, contudo sem trazer a sensação de plasticidade ou irrealidade. A cena das baleias cruzando o espaço é um deleite para os olhos. O maior exemplo desta técnica é John Silver, dito o primeiro personagem 5D, por ter suas partes mecânicas produzidas por computadores, enquanto o resto de seu corpo foi desenhado à mão.

Silver, que no livro é o principal vilão, é o cozinheiro da espaçonave e, por ordens da capitã, torna-se responsável por supervisionar Jim. A priori com a intenção de se aproximar do tesouro, o personagem assume a figura paterna do garoto, o qual fora abandonado pelo pai ainda criança. Silver, no entanto, vê uma nobreza e um enorme potencial inexplorado em Jim, e acaba amolecendo, como o próprio diz momentos depois.

Ninguém sabe que estou aqui, mas sei tudo o que eu quero viver. Dos meus sonhos, vou fazer um caminho traçado por mim. Por que todos querem controlar qualquer coisa que eu pensar se pra eles não estou aqui.

~ Canção “Estou Aqui”

A belíssima canção “Estou Aqui”, a única da fita, com versões em português de Rogério Flausino e Fábio Allman, intensifica este sentimento, contrapondo cenas do pequeno Jim e do pai ausente, com as do presente, onde ele constrói uma interessante relação com o marujo. Esta analogia torna-se uma das importantes vértices do roteiro, culminando no momento em que o ciborgue precisa escolher entre o grumete e sua obsessão de uma vida toda.

O roteiro também busca não julgar as atitudes de Silver, fazendo dele uma personalidade de moral ambígua, porém, ressalta que, embora tenha cometido certos erros, ele pôde se redimir através de seu relacionamento com Jim. Algo que não se repete com Scroop, o aracnídeo psicopata e com sede de sangue. Scroop acaba por assumir o papel de antagonista, ultrapassando as ordens de Silver, que lidera o segundo grupo dentro da tripulação em busca do planeta do tesouro, e até eliminando o Senhor Arrow sem misericórdia. Todavia, em comparação a outros clássicos, o antagonismo de Scroop é amenizado, mesmo sendo um assassino, não criando um confronto desnecessário entre bem e mal, visto que não é esta a proposta da produção.

A sequência de perseguição entre Jim e Scroop no interior da espaçonave, com o “auxílio” de B.E.N. nos efeitos, é um dos pontos altos da animação, muito bem dirigida e executada. Todas as cenas são colaboradas pela trilha sonora composta por James Newton Howard, que trabalhou em “Dinossauro” e “Atlantis: O Reino Perdido”, além de “Batman Begins” e “Jogos Vorazes”, mesclando notas meio futurísticas e que remetem à expansão marítima e aos filmes de piratas.

Planeta do Tesouro”, entretanto, não está livre de alguns deslizes. Morph, a criatura mutante que substitui o tradicional papagaio de pirata, é um alívio cômico, mas, diferente do robô B.E.N., não possui relevância para o desenrolar da trama, sendo utilizado apenas como um elemento de condução – é ele quem leva Jim para cozinha antes de Silver e os outros piratas chegarem para discutir sobre o motim – e seu momento mais importante é quando se transfigura no mapa, que Jim carrega depois de fugirem da nave.

Perseguindo-se um sonho, sempre se perde algo.

~ John Silver.

Alguns detalhes concedidos, se excluídos, não fariam diferença. A condicional de Jim citada pelos robôs fica sem explicações, a razão de ela existir ou suas consequências nunca ficam explícitas, assim como o “flatulês” falado pelo Doutor Delbert, não passa de desculpa para uma piada fraca, sem utilidade posterior. A armadilha implementada por Flint para proteger o tesouro aparenta ser extremamente fácil de ser burlada, com apenas um sensor a laser na entrada, e simples demais para algo supostamente tão bem guardado.

O final do longa-metragem é bastante satisfatório. As principais questões levantadas no decorrer da projeção, a exemplo do futuro de Jim, a reconstrução da estalagem Benbow, as faíscas de romance entre Amélia e Delbert e outras, não são deixadas em aberto, enquanto a relação entre Jim e Silver permanece com um possível futuro a ser explorado.

Além de ser uma fuga das fórmulas dos contos de fadas da Disney, “Planeta do Tesouro” traz, portanto, um certo frescor e um grande diferencial de outros clássicos. Com uma nova abordagem e ambientação inusitada, a animação acaba sendo uma proposta ousada, a qual não foi tão bem aceita pelo público em seu lançamento nos cinemas, porém, tem resistido bem à prova do tempo, e em alguns anos, poderá talvez receber o seu merecido e devido reconhecimento.

Agora, escute-me, Jim Hawkins, há muita nobreza em você, mas deve pegar o leme e traçar o seu próprio curso. Mantenha-se firme, não importa a tempestade.

~ John Silver

Escrito por Lucas

Um grande aficionado por cinema, séries, livros e, claro, pelo Universo Disney. Estão entre os seus clássicos favoritos: "O Rei Leão", " A Bela e a Fera", " Planeta do Tesouro", "A Família do Futuro" e "Operação Big Hero".