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Clássicos na Crítica | Cinderela

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“Um sonho é um desejo d’alma. N’alma, adormeceu. Em sonhos, a vida é calma é só desejar para ter. Tem fé no teu sonho e, um dia, teu lindo dia há de chegar. Que importa o mal que te atormenta, se o sonho te contenta e pode se realizar?”

Um Sonho é um Desejo D’alma

Existe uma certa responsabilidade ao se abordar o clássico “Cinderela“, de 1950. Não se trata apenas de uma grande obra da animação e do cinema ou de uma das personagens mais populares de todos os tempos, é o longa-metragem responsável por, hoje, existir um império comandado por um camundongo, assim como é o representante máximo da Magia Disney – afinal, todos os principais elementos estão lá: músicas, história de amor, uma vilã assustadora, uma protagonista sonhadora e um felizes para sempre.

A abertura tradicional – com um livro se abrindo e uma narração – poderia sinalizar uma produção semelhante à de “Branca de Neve e os Sete Anões” (1937), no entanto, não é esse o caso. Embora haja algumas similaridades entre as duas, a história da Gata Borralheira já possui contornos mais modernos, um indício de uma evolução no perfil das personagens femininas. Cinderela é gentil e bondosa, como a narradora ressalta, porém é um pouco atrevida e demonstra ter mais força, a exemplo de quando afirma estar incluída no convite para o baile e ao retrucar a Fada Madrinha.

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“Ninguém me impedirá de sonhar! Meu sonho é lindo e pode se realizar.”

Cinderela

Somos apresentados à protagonista durante a sua infância, momento em que seu pai decide se casar novamente por sentir que a filha necessita de cuidados maternos. A escolhida para isso é Lady Tremaine, uma viúva com duas filhas da idade de Cinderela. No entanto, o pai da garota falece e, devido aos gastos excessivos da família postiça, ela se torna a serviçal – praticamente uma escrava, na realidade. O seu grande diferencial é a capacidade de se manter positiva até nos piores momentos, conforme aponta na canção: “que importa o mal que te atormenta, se o sonho te contenta e pode se realizar“.

O roteiro, assim como os outros daquele período, é simples e os personagens não possuem muita profundidade, caindo na dualidade de bom e mau. Essa visão maniqueísta é reforçada através das cores. Madrasta e Lucifer, por exemplo, possuem olhos verdes – cor extremamente associada à vilania, vide Malévola e Scar -; a vilã também utiliza roupas em tons de roxo – igual à Rainha Má e Dr. Facilier – enquanto as de Anastasia e Drizella variam entre as duas tonalidades. Já Cinderela tem grandes olhos azuis – como Pinóquio, Fada Azul, Dumbo e Alice – e está sempre usando cores claras e a Fada Madrinha se veste de azul.

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“Sei que não é fácil, mas devemos viver em paz.”

Cinderela

Porém, essa simplicidade do texto não atrapalha, ainda mais ao ser analisando a época em que fora escrito, na qual animações eram cartunescas (há vários exemplos disso: a coroa do Rei atravessando a janela e deixando a sua forma no vidro, os camundongos Jaq e Tatá contra Lucifer, o Grão-duque voando e se pendurando no candelabro) e não era necessário personagens complexos e tramas mirabolantes para entreter o público, a única preocupação era, ao final, transmitir uma lição de moral. E “Cinderela” consegue fazer isso de forma perfeita, destacando a importância de se sonhar, não importa quais sejam as circunstâncias.

Há muitos questionamentos acerca dos motivos para Cinderela não fugir daquele lugar. O roteiro não deixa claro, mas pode-se presumir que ela não tinha nenhuma família próxima para ajudá-la e é preciso lembrar que seu pai faleceu quando era pequena, de forma que foi submetida a anos de maus-tratos e tortura psicológica por parte da nova “figura materna” – podemos ver demonstrações desse comportamento abusivo em diversas cenas. Então, a combinação desses elementos condicionam a protagonista a tal situação e faz com que se contente apenas em sonhar em ter uma vida melhor.

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“Salagadula, mexicabula, Bibidi-Bobodi-Boo. Junte isso tudo e teremos, então, Bibidi-Bobodi-Boo”

Bibidi-Bobodi-Boo

O convite para o baile real, cujo intuito é encontrar uma esposa para o Príncipe, se torna sua passagem para a liberdade. Ao contrário de Branca de Neve, a Gata Borralheira não sonhava com o momento em que seu Príncipe chegaria. Sua intenção era ir ao baile e se divertir, talvez em uma tentativa de amenizar os sofrimentos diários e de ser notada como uma pessoa real. Apesar de Lady Tremaine se opor a isso e triplicar as suas tarefas domésticas, Cinderela se esforça para conseguir terminá-las a tempo de consertar o vestido da mãe e usá-lo na festividade, algo que demonstra sua dedicação e determinação.

Caso não houvesse a colaboração dos camundongos e passarinhos, Cinderela, de fato, não poderia ir ao baile, pois não haveria tempo suficiente para remendar o vestido. E mesmo com a surpresa dos animais e o combinado anterior (de que ela poderia ir, se terminasse todos os afazeres), Lady Tremaine e suas filhas encontram outra forma de destruir o sonho da futura princesa, ao rasgar o seu vestido em pedaços. Ao som de uma versão instrumental sombria de “Um Sonho é um Desejo D’Alma“, ela corre para a fonte, onde encontra a Fada Madrinha.

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“É como um sonho. Um sonho que se realiza.”

Cinderela

A Fada representa aquilo que Cinderela mais precisava naquele momento: uma figura materna de verdade. A desajeitada e bem-humorada senhora é quem oferece colo e a aconselha no momento de crise. É ela quem também a incentiva a ir ao palácio e, com um toque de mágica e bibidi-bobbidi-boo, torna isso possível. A cena em que isso ocorre é espetacular visualmente, os efeitos das transformações são um deleite, seja a abóbora virando carruagem ou os camundongos virando cavalos, com evidente destaque para o momento em que os farrapos de Cinderela se tornam um lindo vestido.

Um dos pontos negativos acaba sendo o pouco tempo de tela para o Príncipe. O par romântico de Cinderela aparece bem menos do que outros personagens, como o Rei e o Grão-duque, o que causa uma certa estranheza e diminui a sua importância, tornando-o basicamente um objeto, de modo que resta ao público a opção de acreditar no amor à primeira vista. A balança também desequilibra em relação ao excesso de atenção a Jaq e Tatá, os quais funcionam como alívios cômicos e ocupam boa parte do filme com cenas que pouco acrescentam.

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“É, sim, meu bem. Mas como nos sonhos, receio que não possa durar muito. Dançará até a meia-noite. Ao soar das doze, a magia cessará e tudo ao que era antes voltará.”

Fada Madrinha

Embora invista no amor à primeira vista, “Cinderela” se distancia da tradicionalidade dos contos de fada por se permitir brincar com esse detalhe, através da narração irônica do Grã-duque a respeito de tudo o que estamos observando acontecer. Para os tempos modernos, em que muitas obras já satirizaram isso, a cena em questão pode até passar despercebida, porém, para aquele período, podemos observar o início de uma leve mudança na abordagem.

Logo, a protagonista ganhou mais contornos em sua personalidade, se mostrando mais forte e decidida, e a forma com que os contos de fada eram trabalhados também evoluiu. Isso abriu as portas – tanto na questão financeira, visto que se o longa-metragem fosse um fracasso, a falência do estúdio de Walt Disney era iminente; quanto criativamente – para as histórias futuras. Em uma análise superficial, as Princesas clássicas (Branca de Neve, Cinderela e Aurora) podem apenas significar esteriótipos femininos – e talvez até os sejam -, porém, foram elas as pioneiras e que serviram como exemplo e influência para as que vieram depois.

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“Sem dúvida alguma, o senho viu um quadro admirável. O jovem príncipe cumprimentando os presentes. De repente, ele para. Ele olha e ai ele a vê. Tal qual um sonho.”

Grão-duque

É possível notar traços da personalidade de Cinderela nas recentes Tiana, ambas são esforçadas e não se deixam abater; e Rapunzel, ambas são sonhadoras e agarram a primeira oportunidade para mudar de vida. Por se tratar da segunda princesa, Cinderela é um grande avanço em relação à Branca de Neve. Em vez de reforçar o modelo utilizado anteriormente, limitando o desenvolvimento das personagens femininas, ao ponto de, talvez, não haver as princesas modernas como as conhecemos, houve uma leve quebra de paradigmas, que continuou com Aurora.

Outra diferença considerável é o fato do Príncipe Encantado não vir ao seu resgate, é ela quem vai ao seu encontro. O baile era apenas um pretexto para uma noite de folga, o par romântico, que ela sequer sabia ser da realeza, foi um brinde. Sem se importar com o rapaz, ao soar das doze, Cinderela foge sem olhar para trás, antes que tudo volte a ser como era antes. No entanto, um de seus sapatinhos de cristal fica para trás. Algo curioso é que o calçado não desaparece com o fim do feitiço e não há explicação para tanto. Em algumas versões do conto, o sapato é um presente da Fada Madrinha, o que não acontece na animação.

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“… O seu coração lhe diz que ela é a jovem destinada a ser sua noiva.”

Grão-duque

Uma possibilidade para isso é analisarmos “Cinderela” como uma metáfora sobre confiança e felicidade. Sem nada e ninguém, Cinderela era uma pessoa solitária, cujo único conforto eram os animais e seus sonhos. O encontro com a Fada Madrinha lhe oferece confiança – na forma dos sapatinhos – para enfrentar sua família postiça e encontrar a tão sonhada felicidade – o Príncipe -, a meia-noite chega, e tudo volta a ser como antes, porém, agora, ela possui confiança em si mesma, ou seja, o motivo do sapatinho permanecer com ela. Assim, quando temos confiança em nós mesmos, podemos encontrar o amor e a felicidade.

O tão famoso par de sapatinhos também pode ser compreendido como uma simbologia da delicadeza de Cinderela, a ponto de poder andar e valsar com ele sem que se quebre, além de representar o quanto a personagem pode se adaptar facilmente às situações difíceis de vida, devido ao desconforto causado por utilizar um sapato de vidro. Apesar dessas hipóteses para preencher as lacunas, o roteiro falha mais uma vez em seu minutos finais, por ignorar convenientemente a ideia de que qualquer garota do reino poderia calçar o mesmo número de Cinderela.

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“Estou feliz. Muito feliz.A chave do céu encontrei. Meu coração pode voar. No céu, as estrelas tocar. Milagre que vem do além, num sonho encantador”

Isto é o Amor

Drizella e Anastasia, com seus pés imensos, são as únicas que vemos experimentar o sapato, mas o Grão-duque havia passado a noite inteira à procura da dona, seria difícil que não tivesse encontrado alguém que pudesse calçá-lo. Cinderela, após ter se revelado como a donzela misteriosa da noite anterior ao cantarolar a música da valsa, é trancada no sótão pela Madrasta, consegue ter tempo suficiente – por causa da enrolação das meias-irmãs – para escapar, experimentá-lo e ter o seu final feliz. Essas falhas são perdoadas por ser uma animação produzida sessenta e cinco anos atrás, ou seja, tempos mais simples e menos exigentes.

Cinderela” é o exemplar máximo de magia e o clássico que consagrou um modelo que até hoje acompanhamos, ainda que muitas mudanças e diversas evoluções tenham ocorrido com o passar dos anos. Mais do que um exemplo cinematográfico, Cinderela é uma inspiração para cada um de nós, seja criança, adulto, homem ou mulher. Por mais que as circunstâncias sejam contrárias, Cinderela nos ensina a não perder a fé, a manter a cabeça erguida e a continuar sonhando, pois, em algum dia, mais cedo ou mais tarde, nossos sonhos irão se realizar.

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Escrito por Lucas

Um grande aficionado por cinema, séries, livros e, claro, pelo Universo Disney. Estão entre os seus clássicos favoritos: "O Rei Leão", " A Bela e a Fera", " Planeta do Tesouro", "A Família do Futuro" e "Operação Big Hero".